sexta-feira, 16 de julho de 2010

O jardim

Era novembro, mas fazia frio. Maluquices do tempo.
Aquele senhor voltava do bar com seu maço de cigarros no bolso, motivo de sua coragem para enfrentar o vento úmido. No caminho de volta, sentiu o sol amenizando a baixa temperatura e iluminando sua cabeça quase completamente desprovida de cabelos. Talvez fosse melhor aproveitar aquele sol. Morava sozinho, era divorciado e seus filhos já eram casados. Não havia motivo para voltar pra casa tão rápido. Resolveu, então, caminhar pelo bairro onde viveu toda sua vida e manter a orientação de seu médico, de praticar algum tipo de exercício, mesmo que seja uma caminhada pelo bairro.
Passou pela banca de jornal, por onde sempre passava.
Passou pela praça das crianças, por onde sempre passava.
Passou pela tinturaria, por onde sempre passava.
E parou por ali, onde sempre parava. Daquele ponto em diante começava uma rua mais estreita e, a pé, ele nunca seguia. Não por qualquer motivo de segurança - o bairro era mesmo muito tranqüilo, como cidades minúsculas do interior - mas sim pelas lembranças.
Até mesmo quando dirigia e era obrigado a passar por ali por qualquer motivo, evitava a todo custo reparar nos detalhes da rua, das casas. Ignorava. Agora não mais dirigia e não precisava ir longe de seu lar para comprar o que quer que fosse. Portanto, por ali ele não passava.
Aquela tarde, porém, não era uma tarde comum.
Não só pelo frio com vento úmido e céu aberto no mês de novembro. Alguma coisa, que jamais alguém poderia explicar, tomou posse daquele senhor e ele seguiu em frente.
Seguiu pela ruela que há anos evitava. E seguiu reparando em tudo. Nas casas, nos postes, no comércio.
A sapataria ainda estava lá, mas a lojinha de doces agora era uma papelaria, a marcenaria era agora um escritório qualquer e o espaço onde antes havia a maior casa da região, agora abrigava um prédio com apartamentos apertados. Talvez as lembranças do comércio daquela pequena rua estivessem embaralhadas, talvez não fosse exatamente assim.
Mas no fim da rua existia uma casa com um portão branco, que sempre foi branco e, esta casa sim, ele jamais iria esquecer.
Avistou de longe. Pensou em recuar, mas já estava ali. Aproximava-se lentamente e a cada passo que dava em direção ao portão branco, sentia seu coração bater cada vez mais forte.
Chegou. O número 640 seguia firme pregado na parede além do portão. Já a tintura da casa não resistira ao tempo e deixava a casa acinzentada.
Que bobagem, pensou. Com tanto tempo a casa deve ter sido pintada e repintada dezenas de vezes. Apesar do cinza, a casa tinha um aspecto alegre e isso se devia ao fato de que havia, entre o portão e a parede, um lindo jardim. Um jardim que antes não existia. Pelo menos, não em sua memória.
Não podia contar quantas rosas existiam ali. Havia outras flores também, mas ele só conhecia as rosas.
Ficou ali, parado em frente àquela casa e admirando as flores, quando de repente foi interrompido por um susto. A porta se abria.
Por ela saiu uma senhora, cabelos grisalhos, vestido florido e um regador na mão. O coração do senhor que havia se aquietado, voltou a acelerar. Seria ela?
Ela não o notou e começou a cuidar de seu jardim. Enquanto regava e cortava algumas flores, ele teve tempo de notar seu rosto e ter certeza. Era ela! E ela o notou.
-Pois não?!
Ele não respondeu. Ela então se aproximou. Olhou nos olhos daquele senhor e o reconheceu.
Aquela não era uma tarde comum.
-Jorge?
-Oi, Lúcia.
-Você... O que você... Oi! Quanto tempo! Você... – ela não conseguia achar as palavras. Nem sabia quais palavras procurar, tamanha surpresa. E ele sorriu, contente por ela ter se lembrado dele e porque achou engraçado a forma como ela não conseguia formular a frase. Ela então parou de gaguejar e sorriu também. Abriu o portão e saiu na calçada para conversarem.
-O que você faz aqui? – conseguiu perguntar.
-Eu estav... eu decidi que... eu... – a gagueira havia passado para ele. – na verdade meu médico disse que seria bom eu fazer caminhadas e resolvi passar por essa rua para chegar no outro bairro e parei aqui pra ver a sua casa e me encantei com as flores.
-Mas... Mas você nunca mais apareceu.
A ênfase que ela deu no “nunca mais” tinha explicação. Quando eram bem jovens, antes mesmo de fazerem 20 anos, eles eram namorados e apaixonados. Em uma época em que se namorava praticamente escondido e que nem em sonho ele poderia atravessar aquele portão branco e por vezes, por esse motivo, iam namorar na sorveteria e depois se sentavam na calçada da marcenaria, olhando para a casa grande e sonhando em um dia comprá-la para casarem e criarem lá seus filhos.
Mas a vida tomou outros rumos. Casaram-se com pessoas diferentes e nunca mais se viram, pois as lembranças causavam, aos dois, um certo sofrimento, uma angústia e uma frustração de saber que aquele romance havia sido interrompido.
-Você também não apareceu.
Ela não respondeu.
-Fiquei sabendo do seu marido... Eu sinto muito.
-Tudo bem, já faz tempo. Encontrei forças nas minhas filhas. Foi uma delas que te contou?
-Não, na verdade eu nem as conheço. Mas seu neto contou para minha neta e ela me contou.
-Engraçado eles se conhecerem, né?
-É... Mesmo colégio, mesma idade, mesma classe... É engraçado.

Os dois se olharam e sorriram novamente.
-Parabéns pelo jardim! – ele cortou o breve silêncio.
-Obrigada. – Sentiu que ia dizer algo importante - Cuido dele há 50 anos.
-Puxa!
– exclamou percebendo se tratar de muito tempo, mas sem fazer as contas - Cuida muito bem. Antes não havia nada, né?
-Não. Eu comecei a criação com uma rosa. Aquela rosa. Aquela que você me deu, pouco antes de terminarmos, lembra? Hoje virou isso.

Ele não conseguiu falar nada. Seu coração, que havia se aquietado, voltou a bater mais forte.
-Desculpe! Nem te convidei para entrar e tomar um café. Vamos?
E lá estava ele, pela primeira vez, atravessando o portão branco.
Aquela, definitivamente, não era uma tarde comum.