quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O amigo do Diabo

Passou a vida inteira jogando na loteria.
Não abandonou seu vício nem mesmo depois da fatídica tarde em que seu médico trouxe o diagnóstico de que não teria mais de um mês de vida, assolado por uma devastadora e misteriosa peste que já havia levado muitos de sua terra natal, além de todos os seus familiares.
Era pobre, mas não miserável, de modo que nunca passou fome, mas não teve qualquer abundância e nem pôde realizar seus sonhos. Queria andar de jet ski, exibindo-se em uma praia repleta de garotas semi-nuas. Queria tomar os melhores vinhos. Queria ter um alambique em casa. Queria voar de helicóptero. E, de ótimo coração, também queria ajudar todas as crianças pobres do mundo.

O tão esperado bilhete premiado veio, mas por ironia cruel do destino, somente no pior e último momento de sua vida. Seus braços fracos e exauridos pela doença mal conseguiam se levantar para esboçar comemoração. Suas pernas, tanto menos. Na escuridão quase total de seu quarto, salvo pela luz de uma única vela acesa, o que era pra ser felicidade transformou-se em lamento e revolta. “Para o diabo!”, murmurou, pois não podia mais gritar. “Para o diabo!”.
Nesse momento, a chama da vela solitária começou a crescer e a crescer, fazendo todo o quarto ser tomado pelo fogo em questão de segundos. Na ardência repentina, surgiu a imagem de um ser vermelho, de chifres, cauda e um impecável fraque negro. Era o diabo em pessoa.
- O que você quer? – perguntou o agora milionário, sem medo e consciente da situação.
-Não lhe parece óbvio? – começou Lúcifer com sua voz grave e exalando terrível hálito podre. – Quero sua alma.
- Mas isso não devia ser um pacto? Eu não deveria ter algo em troca?
- O que quiser, meu caro. O que quiser.
- Pois bem – pensou bem antes de anunciar. – Quero levar toda a minha fortuna comigo. E se não der para usar dinheiro no inferno, que eu possa transformar esse poder financeiro em algum tipo de poder equivalente. Quero continuar rico!
- Que assim seja – respondeu o diabo, finalizando a conversa.
Entregou-lhe um papel para que assinasse. E feito isto, sua horripilante imagem foi sumindo e o fogo apagou-se por completo, sem consumir nada daquele humilde quarto. Por um instante indagou a si mesmo se aquela experiência não havia sido um delírio causado por seu estado terminal. Sem resposta, fechou os olhos para dormir e não mais os abriu.

Era o fim de sua vida de lixo e o início de uma era de luxo que não começou tão boa assim. Estava no inferno, afinal. Um gigantesco deserto de areia vermelha e escaldante abriu-se a sua frente e a imagem de um céu escuro acima de pessoas se arrastando em busca de alimentos e de escravos açoitando outros escravos perturbou-lhe a mente. Mas estava lá, livre da doença e com poderes que ainda não conhecia.
Procurou pelo demônio com quem tinha conversado para saber se sua parte do pacto havia sido cumprida e teve resposta positiva, apesar de não ter recebido muita atenção. Ganhou, então, pedras mágicas que podiam ser trocadas pelo que quisesse. Era o dinheiro que esperou a vida toda e só chegara depois da morte. Com suas pedras, tratou logo de melhorar o ambiente que agora vivia. Sua riqueza impedia qualquer castigo infernal. Até mesmo no inferno os ricos têm privilégios. Construíram para ele uma casa, como sempre desejou, com fontes de cachaça. Adquiriu uma espécie de helicóptero individual, por onde podia sobrevoar todo o deserto vermelho. Com outras tantas de suas intermináveis pedras mágicas, deu um jeito até de fazer uma praia artificial no deserto para que andasse de jet ski. Só faltava, no entanto, quem o ensinasse. Os melhores e mais caros vinhos do planeta estavam na adega de sua casa subterrânea. E como nunca bebia sozinho, passou a convidar seu primeiro e único conhecido, Lúcifer, para as noites de degustação e consequentes exageros. Brindava com o diabo e conversavam sobre todos os temas possíveis e imagináveis. Entre uma taça e outra, falavam dos políticos que por ali estavam, de quem gostariam de ver no inferno, das guerras, dos pedófilos e até mesmo de Deus, a quem o demônio torcia a boca cada vez que pronunciava. A situação era que ele só tinha Lúcifer como companhia e Lúcifer honrava-se de ser convidado para tantos drinks. Ninguém nunca havia se aproximado tanto do diabo. Viraram amigos. Ele ajudava na parte administrativa do inferno oferecendo, inclusive, uma série de melhorias, as quais o demônio nunca havia tido a capacidade de pensar. Tornou-se o braço direito do tinhoso.
Em uma outra infindável noite qualquer regada a vinho, confessou a Lúcifer que apesar de ter sua alma vinculada ao mal, mantinha em sua mente, e quem sabe em seu coração, seu antigo desejo de ajudar de alguma forma as crianças que passavam fome no mundo. O diabo tentou persuadi-lo, dizendo que “o mundo” era passado, pois o “seu mundo” agora era o inferno, com tudo que ele queria e era seu por direito, mas foi em vão. E diante de sua inabalável convicção e bondade, Lúcifer percebeu que aquele não era seu lugar. Como forma de raro agradecimento para com aquele que foi seu único amigo em toda eternidade, propôs:
- Eu rasgo nosso pacto e te faço voltar à vida, com saúde e toda a sua riqueza. Você realiza seu sonho e, na hora certa, eu volto para te buscar e tomarmos mais vinho por aqui.

Aceitou, radiante e emocionado. Fechou os olhos, como na vez que morreu, mas dessa vez os abriu logo. Estava novamente em seu pequeno quarto. Levantou-se, olhou no espelho e percebeu-se incrivelmente saudável. Tomou-se por completa felicidade até que viu sua riqueza que trazia do submundo: um punhado de pedras avermelhadas, sem qualquer valor aqui na Terra. Procurou desesperado e achou seu bilhete de loteria, mas o prêmio já havia caducado há tempos. Estava pobre de novo.
Depois de algumas horas de lamentação, resolveu sair às ruas para aproveitar seu único bem, sua saúde. E ao atravessar a primeira rua, descuidou-se e virou vítima fatal de um atropelamento. Era a segunda vez que morria, mas a primeira que morria miserável.
No além, foi recebido por anjos que o guiaram até o céu, onde, por toda a eternidade, tocaria harpa em um ambiente de total calmaria confundida com tédio, ou vice-versa. Sem vinhos, alambiques ou helicópteros.

E o diabo? Bom, este rapidamente se esqueceu do babaca que tinha passado por ali. Preocupava-se apenas em fazer manobras radicais no jet ski, exibindo seu belo rabo para as garotas semi-nuas.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Trincheira

Combatentes, um aviso: não vão me ferir.
Hoje encaro a guerra de outro modo. Não mais me exponho como antes. Quantos tiros tomei em meu peito? Sinceramente, não sei como sobrevivi.
Carrego um escudo pesado. Mas não o solto por nada. Meu capacete está apertado, não vai cair da minha cabeça caso eu me mova. Sozinho, cavei uma trincheira profunda e muito segura.

Não me chamem de covarde. Ou chamem, se assim considerarem. Eu não me importo. Aprendi a atirar e no primeiro sinal de perigo não tenho piedade em matar quem pode me ferir. As cicatrizes são visíveis e me lembram o tempo todo do perigo que corro a cada batalha. Mas não me retiro, apenas me protejo.

Sei que me meti em um buraco tão fundo que não sei se posso sair para ver o sol. E às vezes penso que se o inimigo aparecer enquanto me distraio e disparar fatalmente em meu peito, tanto melhor. Acabaria com meu desconforto e as cicatrizes não fariam qualquer diferença. Às vezes torço pra isso.
Mas minha experiência no campo de batalha me diz claramente: não iriam me matar, somente me ferir. Logo, me protejo mais e faço disso um ato impossível.

Se não for fatal, ou seja, para sempre, que assim seja, portanto. Que minha trincheira me esconda, que meu escudo me ampare e minhas armas não falhem contra esse inimigo chamado paixão.